por Maria João Caetano
Rita Lee já não tem cabelos ruivos. À beira dos 70 anos, a cantora e compositora brasileira mostra, finalmente, o seu cabelo tal como é: cinzento. E, na autobiografia publicada no ano passado no Brasil e que é agora publicada em Portugal, ela mostra muito mais. Sem filtro, sem rancores e também sem grandes preocupações em contar a história como aconteceu mas, antes, como ela a recorda, aqui está Rita Lee, "a lôka" que já foi "doidona, porra-louca, maconheira, droguística, alcoólatra e lisérgica, entre outras virtudes" e hoje se diz "bem-vivida, bem-experimentada, bem-amada, careta, feliz e... bonitinha".
Rita não contratou nenhum autor-fantasma para escrever por si. Escreve com a sua linguagem muito própria e assume que conta o seu "lado da moeda". O fantasma só aparece de vez em quando - aparece mesmo, um fantasma desenhado com uma qualquer correção ou adenda - num toque de humor e autocrítica. Ela escreve em português, em espanhol, em inglês, usa calão e palavrões sempre que necessário. Como se Rita estivesse conversando connosco à mesa do café, contando histórias que metem Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tim Maia, os famosos festivais da canção, Elis Regina, João Gilberto e até Eric Clapton ou Alice Cooper.
Antes disso, a história começa com Charles e Chesa, o pai e a mãe a que Rita Lee sempre trata pelos nomes próprios. As memórias da infância são absolutamente deliciosas, com Rita já rebelde (a tal ovelha negra da família), aprontando para todo o mundo e fugindo de casa pela janela para ir tocar bateria nas festinhas da escola. Cresceu sendo fã de Peter Pan, de James Dean, de Elvis e dos Beatles.
"Ozmano" - é assim que Rita Lee se refere a Claudio, Arnaldo e Sérgio Dias Baptista, os manos que estiveram na origem dos Mutantes. As memórias da cantora incluem uma casa não muito asseada e uma embirração desde o primeiro momento com Claudio, o mais velho. Arnaldo sempre foi o seu preferido - chegaram a namorar e até casaram, mas apenas de fachada, para descansar a família. No entanto, as histórias que Rita conta de Loki, como era a sua alcunha, revelam que a amizade não resistiu. Desde os problemas com as assinaturas coletivas das composições até às muitas tentativas de reunião do grupo, que Rita Lee sempre recusou.
"O que eu acho de revivals? Um bando de velhas raposas reunidas no que considero "como descolar uma graninha para pagar nossos geriatras"." Olhando para trás, Rita reconhece que não era grande cantora naquela altura e que a música dos Mutantes não era assim tão boa (e até estranha que sejam considerados cult), e não hesita em dizer que aqueles foram bons tempos mas a sua carreira correu muito melhor sem o resto do grupo. Ainda assim, uma curiosidade: foi com os Mutantes que atuou pela primeira vez em Portugal. Fizeram a primeira parte de um concerto de Edu Lobo no Teatro Villaret, de Raul Solnado, em Lisboa. Talvez alguns ainda se lembrem do apagão provocado nada mais, nada menos do que pela então loira oxigenada.
Em vários momentos, Rita pura e simplesmente admite que não se recorda do que aconteceu. As trips foram muitas. "Não faço a Madalena arrependida com discursinho antidrogas, não me culpo por ter entrado em muitas, eu me orgulho de ter saído de todas." Mas há outros momentos que recorda bem e de que fala com emoção, como o modo como conheceu Roberto de Carvalho, a sua grande paixão desde então, os bons momentos com os filhos e o aborto que fez de uma gravidez extrauterina.
Mania de Você, Lança-Perfume, Jardins da Babilônia, Doce Vampiro, Baila Comigo, Desculpe O Auê, Flagra, qualquer um conhece uma mão cheia de canções de Rita Lee, aquela que lutou contra o machismo no rock e que, mesmo sem o cabelo vermelho, continua a ser fogo e a ter tempo para compor "umas musiquinhas". Termina o livro dizendo-se feliz e mais: "A sorte de ter sido quem sou, de estar onde estou, não é nada se comparada ao meu maior gol: sim, acho que fiz um monte de gente feliz".
Uma autobiografia
Rita Lee
Prefácio de Rui Reininho
Editora Contraponto
PVP: 15,93 euros
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